sexta-feira, 14 de novembro de 2008

A interpretação do sonho

por José Carlos Avellar

De certo modo, a radicalização de um comportamento muitas vezes encontrado no documentário brasileiro, onde, com freqüência, em lugar de uma exposição cinematográfica dos resultados de uma investigação feita antes da filmagem e apoiada em instrumentos não necessariamente (ou pelo menos não exclusivamente) cinematográficos, temos na tela um filme que se constitui como um processo de investigação. Como de hábito nos documentários brasileiros, um pouco mais do que de hábito, Tudo isto me parece um sonho convida o espectador a participar da busca, a se incorporar à equipe do filme, a se integrar à investigação.

De certo modo, a extensão de uma prática que o 16 mm tornou possível e o digital uma possibilidade aberta a um maior número de realizadores: em lugar ou além de um roteiro, um filme-roteiro; fazer um filme para pensar/preparar o filme que se quer fazer. Como o Sopralluoghi in Palestina (1963) em que Pier Paolo Pasolini estudou as locações e os enquadramentos de Il vangelo secondo Matteo (1964). Como Appunti per un film sull’India (1968) e Appunti per un’ Orestiade Africana (1975) onde Pasolini pensa dois filmes que não pode realizar. Como o Scénario de Sauve qui peut (la vie) (1979) e Scénario du film Passion, anotações filmadas por Jean-Luc Godard. Como Câncer (1968) em que Glauber estudou planos de longa duração para a filmagem de O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969). Como Searching on the road que Walter Salles faz agora como parte do roteiro para a próxima adaptação do livro de Jack Kerouak On the road. De um certo modo, como os exemplos citados aqui, Todo esto me parece un sueño passa na tela como um filme-roteiro.

Parte de tudo isso já se encontra esboçada num projeto realizado em 1976, Iaô, que originalmente previa uma segunda equipe para documentar o trabalho de documentação da primeira e permitir a discussão simultânea da questão filmada e do modo de filmá-la. E esboçada também num breve ensaio sobre o que de verdade se documenta num documentário: Quatro notas e um depoimento sobre o documentário, escrito em 1978. Não porque registra um fragmento da vida tal como ele é (ou, como falamos do ponto de vista do cinema: assim como ela aparece aos olhos) um documentário é um documentário. Um filme é um documentário porque na imagem o espectador percebe primeiro (conscientemente ou não) o modo de ver do realizador. Um documentário é um processo de construção de uma imagem cinematográfica em que o homem com a câmera revela seu modo de ver e sentir o mundo. E nele, embora tudo pareça vivo verdade, reprodução fiel da aparência primeira das pessoas e coisas em movimento, o que de fato importa é a ordem que comanda o desenho desses fragmentos que parecem vivos e a relação que se estabelece entre eles. Tal ordem que não reproduz nem espelha o pedaço de realidade que observa, mas deforma, reforma, transforma, transporta a realidade para a realidade/outra do cinema. Ou seja, como sublinha o ensaio, o que um documentário realmente documenta é a maneira de documentar do realizador: “Essa maneira de documentar (supondo-se que ela pudesse ser configurada num corpo orgânico de regras e princípios filosóficos, estéticos, etc.) estaria determinada por questões de produção, por situações de ordem técnica e por limitações que decorrem de meu maior ou menor domínio dos meios de realização, como minha maior ou menor experiência etc. Quer dizer, entre o originalmente imaginado - a minha maneira de conceber um tema - e a forma definitiva que ele assume na obra acabada há uma distância a percorrer durante a qual o projeto inicial sofre modificações. E a questão ainda se complica quando verifico que o objeto a ser documentado, o outro, o mundo, é vivo, reage e é seguramente mais rico e complexo que o previamente imaginado. A minha afirmação inicial, a de que o documentário realmente documenta com veracidade é a minha maneira de documentar, estará talvez mais correta se também concebo como maneira de documentar a minha peculiar maneira de reagir às situações e questões concretas que surgem durante a realização. A pratica quase sempre me força a agir assim.
Mas nem sempre estamos preparados para rejeitar a dualidade sujeito/objeto, para transformar
todas as etapas de realização de um filme documentário em etapas realmente criadoras, liberando a subjetividade e assimilando a invasão inesperada do real. Quando isto ocorre, antes mesmo que o espectador, o primeiro resultado quem o colhe sou eu mesmo com a ampliação de meu espaço interior imagístico”.

Deste modo, o título do filme, aqui, não apenas se refere ao tema, a Abreu e Lima, nem apenas toma
por empréstimo uma frase dele. O título traduz a sensação que toma conta do realizador diante dos fragmentos da realidade que na projeção passam com a força de coisa viva de verdade: tudo isso me parece um sonho.

Sonho, não como uma fuga da realidade mas como uma interpretação da realidade.

Sonho cinematográfico, sonho assim como todo sonho é percebido pelo sonhador – seja o sonho que cada um projeta para si mesmo ou o que no cinema se projeta para ser sonhado por outro.

Sonho assim como percebido no instante em que é sonhado: imagem viva, real, embora sem dúvida sonho com tudo aquilo que um sonho tem de imagem que mais critica que espelha a realidade - assim é um documentário.

Assim é especialmente este aqui, porque desde seu ponto de partida (como fazer um filme sobre um personagem de quem não se tem nenhuma imagem visual?) deixa a descoberto que seu assunto é tanto seu personagem quanto a realização de um filme documentário sobre tal personagem. Mais exatamente, só na medida em que percebe o filme enquanto documento sobre um filme é que o espectador pode corretamente receber o que este documentário documenta.

Assim, para falar de Abreu e Lima simultaneamente falar de cinema: trazer em fusão sobre a história que se conta os procedimentos usados para contá-la: uma segunda câmera filma a primeira que filma os depoimentos; uma entrevista conta quem foi Abreu e Lima, a seguinte como avança o processo de trabalho - parte da equipe entrevista a outra parte ou entrevista o realizador, então dentro da imagem já não mais como quem dirige o filme e sim quase como fosse dirigido por ele.

Documentação dupla, mesmo quando não se trata de informar ao mesmo tempo o tema do filme e o modo de abordá-lo. Enquanto entrevista um personagem e toma um cafezinho com ele no balcão de um bar num mercado de Caracas a câmera passeia pelo mercado e, ouvidos atentos à conversa no balcão, desvia a vista para o que se passa em volta, nos outros balcões e lojas. Enquanto passeia nas ruas de Recife onde Abreu e Lima viveu, sem desviar olhos e ouvidos do entrevistado que conta o que ocorreu outrora, a câmera apreende também - presente e passado em fusão numa mesma imagem - o que ocorre agora, no exato instante da filmagem.

É deste modo que o filme realiza sua proposta inicial de tornar visível num filme uma história e um personagem de quem não temos nenhuma (ou quase nenhuma) imagem. E, como o próprio filme sugere nas conversas sobre seu processo de construção, a solução do problema veio de modo inconsciente, foi intuída pouco a pouco, passo a passo, a partir de uma única decisão tomada em plena consciência: colocar a câmera em total disponibilidade para sonhar de olhos abertos, para reafirmar que a realidade parece um sonho, que a vida como ela é e como a desejamos, que tudo enfim que alcança a vista, de olhos abertos e de olhos fechados, parece um sonho.

Mas nem sempre estamos preparados para rejeitar a dualidade sujeito/objeto, para transformar
todas as etapas de realização de um filme documentário em etapas realmente criadoras, liberando a subjetividade e assimilando a invasão inesperada do real. Quando isto ocorre, antes mesmo que o espectador, o primeiro resultado quem o colhe sou eu mesmo com a ampliação de meu espaço interior imagístico”.

Deste modo, o título do filme, aqui, não apenas se refere ao tema, a Abreu e Lima, nem apenas toma
por empréstimo uma frase dele. O título traduz a sensação que toma conta do realizador diante dos fragmentos da realidade que na projeção passam com a força de coisa viva de verdade: tudo isso me parece um sonho.

Sonho, não como uma fuga da realidade mas como uma interpretação da realidade.

Sonho cinematográfico, sonho assim como todo sonho é percebido pelo sonhador – seja o sonho que cada um projeta para si mesmo ou o que no cinema se projeta para ser sonhado por outro.

Sonho assim como percebido no instante em que é sonhado: imagem viva, real, embora sem dúvida sonho com tudo aquilo que um sonho tem de imagem que mais critica que espelha a realidade - assim é um documentário.

Assim é especialmente este aqui, porque desde seu ponto de partida (como fazer um filme sobre um personagem de quem não se tem nenhuma imagem visual?) deixa a descoberto que seu assunto é tanto seu personagem quanto a realização de um filme documentário sobre tal personagem. Mais exatamente, só na medida em que percebe o filme enquanto documento sobre um filme é que o espectador pode corretamente receber o que este documentário documenta.

Assim, para falar de Abreu e Lima simultaneamente falar de cinema: trazer em fusão sobre a história que se conta os procedimentos usados para contá-la: uma segunda câmera filma a primeira que filma os depoimentos; uma entrevista conta quem foi Abreu e Lima, a seguinte como avança o processo de trabalho - parte da equipe entrevista a outra parte ou entrevista o realizador, então dentro da imagem já não mais como quem dirige o filme e sim quase como fosse dirigido por ele.

Documentação dupla, mesmo quando não se trata de informar ao mesmo tempo o tema do filme e o modo de abordá-lo. Enquanto entrevista um personagem e toma um cafezinho com ele no balcão de um bar num mercado de Caracas a câmera passeia pelo mercado e, ouvidos atentos à conversa no balcão, desvia a vista para o que se passa em volta, nos outros balcões e lojas. Enquanto passeia nas ruas de Recife onde Abreu e Lima viveu, sem desviar olhos e ouvidos do entrevistado que conta o que ocorreu outrora, a câmera apreende também - presente e passado em fusão numa mesma imagem - o que ocorre agora, no exato instante da filmagem.

É deste modo que o filme realiza sua proposta inicial de tornar visível num filme uma história e um personagem de quem não temos nenhuma (ou quase nenhuma) imagem. E, como o próprio filme sugere nas conversas sobre seu processo de construção, a solução do problema veio de modo inconsciente, foi intuída pouco a pouco, passo a passo, a partir de uma única decisão tomada em plena consciência: colocar a câmera em total disponibilidade para sonhar de olhos abertos, para reafirmar que a realidade parece um sonho, que a vida como ela é e como a desejamos, que tudo enfim que alcança a vista, de olhos abertos e de olhos fechados, parece um sonho.

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