sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Poesia na língua da esperança

por Rodrigo Fonseca

É comum o inconformismo do cinema diante de imagens sem registro histórico preciso, sem legenda ou paradeiro. Entre os exemplos, destaco uma foto da campanha militar americana no Pacífico, durante a Segunda Guerra Mundial, que inspirou Clint Eastwood a filmar dois épicos, de pontos de vista antagônicos - "A conquista da honra" e "Cartas de Iwo Jima" -, sobre o heroísmo anônimo. Da mesma forma, Milos Forman concebeu "Sombras de Goya" a partir das pinturas espanholas de mulheres cuja beleza ultrapassou o véu castrador da Inquisição. Um movimento parecido rege "Tudo isto me parece um sonho", de Geraldo Sarno. Nos primeiros planos, o espectador é apresentado a um retrato do general José Ignácio de Abreu e Lima (1794-1869), jornalista, escritor e soldado pernambucano que participou das pelejas pela independência da América espanhola. Dúvidas variadas rondam o quadro, incorporado à Galeria de Arte da Assembléia Nacional da Venezuela, em especial sua pertinência como representação de Abreu e Lima. A possível distância histórica entre signo e significado é a deixa inicial para um filme com aparência prévia de cinebiografia, que revela, pouco a pouco, ser um (cine)poema-processo. Mais do que isso, mais que filme, "Tudo isto..." é um mergulho no imaginário latino-americano à cata de sonhadores que os livros de História relegaram a notas de rodapé. E é em torno uma seqüência com pinta de nota, remissiva ao passado filosófico que embasou as grandes cruzadas emancipatórias da Pangéia hispânica do Novo Mundo que o documentário se estrutura.
Lá pelo primeiro terço de "Tudo isto me parece um sonho", o realizador baiano Geraldo Sarno e o professor pernambucano Vamireh Chacon, em meio a uma reflexão sobre as raízes históricas da ideologia de Abreu e Lima, chegam a um denominador comum: Jean-Jacques Rosseau (1712-1788). Na simples menção ao nome do autor de "O contrato social", a platéia encontra pistas para decifrar as motivações éticas e filosóficas do novo documentário do diretor de "Viramundo" (1965). Algo sugere que o debate entre o cineasta e o historiador acerca de Rosseau vá além do fato de ele ser a argamassa intelectual dos grandes guerreiros dos processos de emancipação latino-americanos no século XIX, em oposição ao culto a Montesquieu (1689-1755), outro mito da intelectualidade. A referência parece presente como uma metáfora para o esforço cinematográfico que rege a produção, ou seja, o esforço do desvelamento.
Em uma de suas cartas ao colega Voltaire (1694-1778), para discutir a causa primeira de todas as desordens da sociedade, Rosseau afirma ter descoberto que "os males dos homens lhes vem mais pelo erro do que da ignorância". Segundo o pensador, "o que nós não sabemos nos prejudica muito menos do que o que nós julgamos saber". Eis a aí a pulsão que serve de combustível a "Tudo isto me parece um sonho": desvendar os mistérios por trás de uma figura, dissecando, ao mesmo tempo, as nuanças e bastidores desse ato de desvelar a História em forma de filme. Se existe um esboço histórico que é fundamental ao entendimento da imortalização de Abreu e Lima em retrato, qual é o problema de se incorporar o esboço do documentário, ou seja, seu making of, sua preparação, ao corpo final da montagem, fazendo dele peça central do jogo de sentidos que a jornada cinematográfica de Sarno à caça do general potencializa. O trabalho de captação de som direto de Nicolas Hallet será seu principal aliado.
Qual é o lugar daquele retrato na memória dos povos cuja liberdade Abreu e Lima lutou para conseguir? Ao mesmo tempo, que espaço a memória brasileira reservou ao homem egresso do Recife que ultrapassou fronteiras de língua e geografia em torno do mesmo credo libertário que embalou Bolívar e outros heróis políticos? Do que sabe sobre o general recifense, o que é fato e o que é folclore? Com base nessas perguntas, Sarno idealiza um engenho fílmico no hibridismo da ficção e do registro documental. Ao largo da pesquisa sobre os feitos de Abreu e Lima, uma encenção, embalada nos poderes radicais da invenção, justifica aquilo que o memorialismo científico deixou passar ou não conseguiu alcançar. Afinal, se como o título sugere, "Tudo isto me parece um sonho", uma dimensão ficcional, com uma deixa para o onírico, faz-se bem-vindo, dando passagem para um ator (Wilson Mello, em uma interpretação sóbria). Em cena se vê um intérprete que encarna as (possíveis) angústias que guiaram os passos de Abreu e Lima. Nessa perspectiva, uma vez mais, Sarno retoma um processo investigativo que trança sua obra desde os primeiros filmes: a busca pela identidade. Essa busca vai se materializar tanto na radiografia dos nordestinos em diáspora para São Paulo em
"Viramundo" quanto no recorte de uma burguesia em agonia diante do imperialismo em "Coronel Delmiro Gouveia" (1977).
Em um dos primeiros diálogos com sua equipe, Sarno deixa evidente o resgate de sua busca autoral característica ao explicar que "Tudo isto me parece um sonho" não se limita a ser um filme sobre Abreu e Lima. "Estamos fazendo um filme sobre processos revolucionários. Sobre revoluções", diz o diretor. Com sutileza, Sarno deixa entender que seu longa fala das revoluções com a cara da América Latina e suas veias abertas. Em um diálogo posterior, após um encontro com o historiador venezuelano Pedro Sosa, Sarno vai questionar o fato de que existe uma tendência continental a se atribuir as transformações latino-americanas a acontecimentos externos, seja em sinal de agradecimento a forças externas, seja em reação de repúdio a politicagens estrangeiras. Onde hoje vemos o dedo dos EUA, nos tempos de Abreu e Lima via-se a Inglaterra e as seqüelas da especulação fiduciária de sua primazia no tecnicismo industrial. Mas quais são as ambições hispano-americanas no torvelinho das transformações geopolíticas globais? Quais são os ensejos e as utopias que requerem um filtro a partir de uma figura como Abreu e Lima para serem entendidos.
Se, como dizia Rosseau, o desconhecimento é menos grave do que juízos prévios, Sarno tenta fugir dele revendo e refazendo, no presente, o périplo ideológico que levou Abreu e Lima a assumir uma causa por territórios que não faziam parte (direta e efetiva) à sua terra natal, seu Recife de origem. O dispositivo "conversa", cada vez mais freqüente nas práticas processuais do documentário brasileiro a partir da Retomada, é uma ferramenta ideal no exercício quase socrático de buscar os traços residuais do personagem Abreu e Lima nas culturas pernambucana e hispano-americana. Ao abrir mão do método clássico de entrevista e deixar falar, "Tudo isto parece um sonho" ganha humanidade. O depoimento livre dá chance ao humor, à tensão, ao desacordo, à vida. Por essa trilha, o filme foge de guetos herméticos e se abre à franqueza, evitando a palavra domada, ensaiada. Em cada frase sobre a América Latina dos séculos XIX e XX, o filme desvenda uma das paletas históricas nas tintas que eternizaram Abreu e Lima pictoricamente. O próprio Sarno se inclui nessa mecânica.
No encontro com o professor Vamireh Chacon, por exemplo, Sarno vai diminuir o fosso "cenocrático" entre ele e seus entrevistados compartilhando com seu interlocutor diretor (e com o público) suas considerações mais pessoais sobre as lacunas memorais do Brasil e seus países hermanos. Uma menção ao texto do filósofo Walter Benjamin (1892-1940) acerca do quadro "Angelus novus", de Paul Klee (1879-1940), vai desnudar suas impressões acerca das desilusões trazidas pelas falências utópicas. Como não enveredar pelo tema do descrédito ideológico e da desilusão diante da causa de Abreu e Lima?
Ficcionalmente, no plano formal, "Tudo isto me parece um sonho" retoma uma tradição de filmes de época na qual "Danton, o processo da revolução" (1982), de Adrzej Wajda, é a alusão mais imediata. Apoiado na atuação de Wilson Mello, Sarno constrói uma espécie de bunker solitário onde seu Abreu e Lima se resguarda do mundo, imerso em suas memórias e uma revisão do processo de libertação da Venezuela do domínio europeu. Enquanto a parte investigativa do filme se caracteriza por uma polifonia de impressões, sua fração "encenada" é, quase que integralmente, pontuada pela solidão. Uma vez mais o "Angelus novus", de Klee, é evocado, só que, desta vez, não com palavras, e sim no olhar igualmente perplexo (e cansado) de Abreu e Lima na composição de Mello. Afinal, o ator dá ao personagem o tom de homem que busca compreender seu lugar no tempo e no espaço, assim como sua funcionalidade política (e humana) na nova América Latina que configura em sua frente.
Em um momento crítico _ talvez o mais contundente do longa _, Mello, vestido com a farda de Abreu e Lima, sai às ruas e interpela pessoas sobre quem seria aquela figura em vestes militares que virou nome de rua. Alguns o confundem com heróis do processo da emancipação republicana brasileira. Outros o definem como algum dos estadistas da ditadura militar dos anos de chumbo. Diante desse desconhecimento popular, Mello, nas franjas de um distanciamento quase brechtiano, apresenta-se e sai, fazendo a encenação de um mito esquecido. É para abafar esse esquecimento e pôr a luz uma época em que a América Latina brigou por sua identidade que o filme existe. E, no entroncamento do que é ficcionalizado e do que é documentado, Sarno acha sua poesia numa língua que está para além do espanhol e do português: a linguagem do cinema. E da esperança.

Nenhum comentário: